Sonho de uma Noite de Verão: a mística comédia do amor shakespeariano

Entre as peças teatrais mais conhecidas e apresentadas nos últimos séculos estão, sem dúvida, aquelas do vasto repertório de obras de William Shakespeare. O poeta, dramaturgo e ator inglês é considerado o maior escritor da língua inglesa e um dos mais eminentes dramaturgos do mundo. É comumente chamado de Poeta Nacional da Inglaterra e de Bardo de Avon. Seu repertório, incluindo as colaborações, consiste em aproximadamente 38 peças de teatro, 154 sonetos, 3 poemas de longa narrativa e alguns versos de autoria incerta. Seus trabalhos foram traduzidos para a maioria das línguas atuais e performados mais que de qualquer outro dramaturgo.

Shakespeare nasceu e cresceu em Stratford-upon-Avon, em Warwickshire, Inglaterra. Aos 18 anos, casou-se com Anne Hathaway, então com 26, e teve três filhos: Susanna e os gêmeos Hamnet e Judith. Ingressou no teatro londrino no ano de 1587 e, dois anos depois, começou a escrever Henrique VI. Seus primeiros sonetos surgiram em 1589, e essa produção poética se estendeu até o ano de 1609. Em 1610, Shakespeare volta a sua terra natal e escreve suas últimas obras, pois, infelizmente, vem a falecer no ano de 1616. O autor produziu a maior parte da sua obra conhecida entre 1589 e 1613. Seu trabalho incluiu tragédias, comédias e histórias, as quais são consideradas algumas das maiores obras da língua inglesa.

Até os dias atuais seus trabalhos são adaptados inúmeras vezes e redescobertos, inclusive, academicamente. Suas obras permanecem altamente populares e são constantemente estudadas, performadas e reinterpretadas em diversos contextos políticos e culturais em todo o mundo. Essa “atualidade” que já perpassa séculos se dá por conta de diversos fatores, tais como: os temas são de extrema relevância; a linguagem utilizada pode ser configurada como histórica – por não se tratar do inglês moderno, nas obras originais – , além de ser de alto padrão inglês; a métrica é complexa e muito bem pensada, fazendo com que as falas rimem entre si e deem uma perfeita sonoridade.

Citaremos aqui, mais especificamente, alguns temas abordados na obra Sonho de uma Noite de Verão, uma comédia escrita em meados da década de 1590. Não se sabe ao certo quando a peça foi escrita e apresentada ao público pela primeira vez, mas crê-se que tenha sido entre 1594 e 1596. Essa obra foi uma das primeiras escrita pelo bardo inglês. Vale destacar que bardo era a pessoa encarregada de transmitir histórias, mitos, poemas e lendas de forma oral, por vezes até cantando.

O cenário para o desenrolar dessa peça é bem apresentado no primeiro ato, quando a obra situa o leitor: Hérmia é filha de um ateniense chamado Egeus, que já tinha planejado o casamento da moça com Demétrio, um homem rico e escolhido pelo pai de Hérmia para ser seu marido. Porém, Hérmia ama Lisandro e quer de todo modo casar-se com ele. Egeus, como quase todos os pais dessa época e seguindo as leis de Atenas, dá três opções para a filha: casar-se com Demétrio, o escolhido, ou então ir para um convento. Se nada disso a contentasse, seu destino seria a morte.

Nessa primeira situação, podemos perceber a presença do patriarcado e do machismo impostos de forma tão intensa naquela época, que feria a própria liberdade de Hérmia em escolher com quem queria se casar ou o que queria para sua vida. A imposição de escolha do noivo de Hérmia pelo seu pai demonstra o domínio da figura masculina perante as mulheres da sociedade retratada na obra. Esse tema é visivelmente desenvolvido também em outra situação que aparecerá mais adiante na peça, na relação entre Oberon e Titânia, pois quando a mulher nega a tutela, para o homem, do menino que ela ajudou a salvar, ela é punida por ele.

Dessa forma, percebe-se que o direito do livre-arbítrio não é concedido igualmente para homens e mulheres, tanto no mundo dos humanos, quanto no mundo dos seres mitológicos. Assim, pode-se considerar o livre-arbítrio e sua falta, como um dos temas centrais desenvolvidos no livro, uma vez que se trata de um tema universal e que pode ser considerado o ponto de encontro entre o universo humano e o mitológico.

Também percebemos claramente – ainda no primeiro ato da obra – o papel que o convento representava: várias – se não a maioria – das mulheres que entravam para virar freiras não estavam lá por vocação ou por escolha própria; o convento, no caso de Hérmia, serviria como um lugar de punição. Percebemos isso com o passar dos anos e esse fato se alongou até o século XX, quando várias famílias mandavam uma ou duas filhas para o convento a fim de ser “uma boca a menos para comer” em casa, uma vez que tinham grande quantidade de filhos e não possuíam renda suficiente para sustentar todos.

Outro aspecto a ser considerado e que perpassa pelas relações desenvolvidas no livro é o amor. Esse sentimento aqui é retratado como algo vivido de forma intensa, beirando o exagero e o irracional, além do fato de que esse sentimento é visto como algo que pode ser facilmente manipulado e/ou alterado, uma vez que as personagens modificam a pessoa pela qual nutrem o amor por meio dos feitiços das fadas. Dessa forma, pode-se questionar a real possibilidade de um amor genuíno. Temos também de considerar o amor proibido (de Hérmia e Lisandro) e o amor não correspondido (Helena e Demétrio), que aparecem e mudam ao longo da peça. Ainda é possível ressaltar a presença de constantes declarações amorosas, e o próprio amor proibido que acaba em tragédia, representado na obra pela morte de Píramo, personagem do teatro apresentado pelos trabalhadores, dados que fazem intertextualidade com a obra Romeu e Julieta, de Shakespeare. 

Outro elemento encontrado na obra é o próprio teatro, que estava em ascensão na época da Renascença, especialmente no início do período Elisabetano, uma vez que os atores, anteriormente vistos pela lei como vagabundos e rufiões, passaram a ser reconhecidos legalmente em 1577 e começaram a atuar com o apoio dos nobres desse período histórico.  Em suas obras, Shakespeare buscou destacar as peças teatrais, como é perceptível em Hamlet e, em especial, nesta obra resenhada. Em Sonho de uma Noite de Verão, o teatro é desenvolvido na trama por meio do ensaio para a encenação da peça Píramo e Tisbe, realizado por trabalhadores com o intuito de apresentá-la durante os festejos do casamento de Teseu e Hipólita. Durante o ensaio, os trabalhadores Peter Quince, o carpinteiro; Nick Bottom, o tecelão; Francisco Flauta, o remenda foles; Robim Starveling, o alfaiate; Tom Snout, o caldeiro; e Snug, o marceneiro, se reúnem na floresta, e entre momentos cômicos, desenvolvem a criação da peça.

Nessa floresta, lugar em que as potencialidades se expandem, a magia, a criação e a imaginação tomam conta do cenário, a escrita de Shakespeare coloca em evidência os mecanismos da criação do teatro. Nesse sentido, é ressaltada a organização da peça, divisão dos papéis e até mesmo a criação do cenário, tornando esse momento da obra um metateatro, isto é, uma peça dentro de outra peça. Assim, pode-se dizer que, por meio da representação cômica da organização da peça de Píramo e Tisbe, Shakespeare faz uma paródia de si mesmo e do modo como as peças eram feitas na época.

Além disso, pode-se afirmar que o autor chama a atenção da imaginação do público para a criação da fantasia e a importância da imaginação na construção de uma peça, uma vez que os leitores são instigados a imaginar os elementos que estão presentes na encenação para além de sua forma física, como acontece com o intitulado personagem “luar”, que é interpretado por um dos trabalhados que segura uma lanterna.

Também podemos ressaltar que a floresta exerce o papel de transformação dos trabalhadores em atores e possui papel importante para as transformações físicas da personagem Nick Bottom em uma criatura com corpo de homem e cabeça de burro. Essa metamorfose ocorre quando, para divertimento, Puck, duende que é o leal ajudante de Oberon, enfeitiça Bottom, fazendo com que todos os trabalhadores atuantes na peça se dispersem e fujam com medo do próprio companheiro e dos feitiços da floresta. Dessa forma, é possível perceber a importância dos seres fantásticos na trama, uma vez que eles interferem na vida dos humanos e, a partir dessas interferências, ocorrem grandes desentendimentos na vida dos mortais.

Os seres fantásticos apresentados na obra de Shakespeare – fadas e duendes – são essenciais para o entendimento de temas mencionados anteriormente, como o amor manipulado, visto que, através de um feitiço, podem fazer com que os humanos gostem ou deixem de gostar de alguém. Isso interfere de forma direta no livre-arbítrio, outro assunto previamente abordado, pois demonstra que, muitas vezes, os humanos ficavam submetidos às vontades dos seres mitológicos, devido a forças que não podiam controlar. Essa situação pode demonstrar que Shakespeare, assim como outros escritores renascentistas, oscilava em crer que o homem pudesse ter liberdade de escolha ou ficava a mercê de suas falhas de caráter ou mesmo de forças sobrenaturais, como exemplificado nesta obra.

A obra Sonho de uma Noite de Verão é de extrema importância não somente para a literatura inglesa, mas, principalmente, para a literatura mundial. Como abordado ao longo desta resenha, os temas aludidos ao longo do drama, como o amor e o livre-arbítrio, por exemplo, são temas atemporais e ainda servem como base para muitas obras contemporâneas. O fato de Shakespeare, nesta obra, apontar para situações onde o amor é facilmente transformado ou exagerado, pode se caracterizar como um questionamento quanto à sinceridade desse sentimento nas relações interpessoais existentes entre as personagens, mas também entre os leitores. Isso se configura ao final da peça, quando podemos nos questionar se o feitiço foi realmente retirado de Demétrio, que continua amando Helena, uma pessoa que detestava antes do acontecido. Acreditamos que essa situação é deixada em aberto para a interpretação e conclusão do leitor. Além das temáticas abordadas, a produção aqui apresentada também se destaca pela fluidez na leitura, sendo indicada para todos os amantes – e não amantes – da literatura.


Autoras

Estela Mettler Piva, Milena Taliza Cazzonato e Paola Biavatti, graduandas do 7° nível do curso de Letras da Universidade de Passo Fundo.

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