O horror angustiante da normalidade no filme Zona de Interesse

A cena final de Zona de Interesse, dirigido por Jonathan Glazer, é talvez uma das melhores definições de “soco no estômago” já produzidas pelo cinema. Nela, vemos o oficial nazista e figura histórica Rudolf Höss saindo de seu escritório no ano de 1944 e descendo uma escadaria em espiral, quase infinita, após ser selecionado para retomar o comando das operações do campo de concentração de Auschwitz, onde ocorrerá um extermínio em massa de milhares de judeus no auge do holocausto. De repente, por duas vezes, Rudolf para em meio aos degraus e se inclina para tentar vomitar, mas não consegue. Tal ação pode significar que se a mente não se enoja com as atrocidades que serão causadas a seguir, o corpo tenta tirar algum último pingo de consciência e humanidade do nazista, mesmo que em vão. Ele então olha fixamente para o final de um longo corredor, quando a cena corta para os dias atuais no museu de Auschwitz, mostrando a limpeza e higienização do local e de todos os itens envoltos em horror pertencentes aos judeus assassinados. Bruscamente, a cena volta para Rudolf, como se ele tivesse visto esse futuro, mas, ainda assim, não consegue enxergar esse período obscuro da história da humanidade como algo errado, do mesmo jeito que seu corpo não conseguiu fazer seu último pingo de humanidade ser o suficiente para mudar isso. Höss coloca seu chapéu militar em sua cabeça e continua descendo as escadas rumo à escuridão.

Baseado no livro homônimo, escrito por Martin Amis, o objetivo simples e agoniante da história é colocar o telespectador dentro do cotidiano da família de um oficial nazista. Apesar de no livro de Amis a trama girar em torno de diversos personagens, contendo elementos de tensão, romance e mesmo leve humor, o diretor Jonathan Glazer decide fazer diferente: focar apenas na família de Rudolf Höss, acompanhando o relacionamento dele com sua esposa, filhos e empregados, vivendo todos os dias em uma casa ao lado de Auschwitz. A partir daqui o terror que pode haver dentro de uma vida normal, se apresenta. A preparação para todo o desconforto presente no filme já começa nos créditos iniciais, com uma tela preta que dura três minutos, junto a uma música inquietante de fundo, como se fosse um elevador descendo lentamente para o inferno.

A ideia central abordada no filme remete ao conceito de banalidade do mal, da filósofa política alemã Hannah Arendt. Em 1963, a pensadora publica Eichmann em Jerusalém, após ter assistido o julgamento de Adolf Eichmann, um dos arquitetos da “solução final” do nazismo. Como Arendt mesmo diz, ela chega no julgamento esperando encontrar um monstro, mas se depara com uma pessoa aparentemente normal. Eichmann não aparentava possuir nenhum mal enraizado ou raiva, tão pouco um antissemitismo absoluto.

O nazista, durante todo o seu julgamento, alegava que estava apenas cumprindo ordens e que achava estar fazendo o certo por seu país, revelando uma mecanização e monotonia em relação ao gerenciamento dos judeus que chegavam aos campos de concentração. Pensando nisso, Arendt refletiu que o mal causado por Eichmann foi feito por motivos diferentes de outros nazistas evidentemente antissemitas, apesar das ações serem imperdoáveis e condenáveis na mesma medida. Surge aqui o termo da banalidade do mal, pelo qual o mal também pode se dar por atitudes banais, omissas, indiferentes, frias e vazias de pensamento. Essa concepção, cunhada pela filósofa, serviu para estudos e explicações de diversos comportamentos de governos autoritários, além de deixar claro que a banalidade do mal é tão perigosa quanto o mal em si, pois esta tem o poder de alterar o senso comum.

Acompanhar a família de Rudolf Höss no filme é uma tarefa árdua. Não há em nenhum momento cenas gráficas ou violentas nem há cortes que mostrem o campo de concentração de Auschwitz ou a figura do judeu. Tudo o que se vê é uma família vivendo sua vida, cozinhando, brincando do outro lado de um muro vizinho ao campo de extermínio. O poder que o longa tem de causar imenso desconforto está na sutileza muito bem utilizada. A inquietação é manifestada por conta da linguagem visual e sonora, que entram em contraste com as cenas monótonas que estão em primeiro plano. É comum ver a família conversando trivialidades ao som de tiros e gritos ao fundo, ou as crianças brincando quando longe se faz presente uma chaminé enorme dissipando uma fumaça escura junto a cinzas. Isso é a definição de normalidade para essas pessoas. Tão normal quanto uma brincadeira infantil de câmara de gás na estufa da casa ou o próprio Rudolf Höss sempre se mostrar inerte com a monotonia de seu trabalho de comandar Auschwitz, como se fosse uma atividade normal como qualquer outra.

Todo o horror silencioso sentido no filme opera a partir da banalidade do mal, que se faz presente em todos os personagens, de modo frio e aterrorizante. O contexto em que a casa está inserida, sendo vizinha de um campo de extermínio que emite gritos e sons de disparo constantemente, deveria provocar medo e horror a quem quer que vivesse nela, certo? Não se o descaso e o banal tirarem a humanidade das pessoas que vivem nela.

Por ser uma teoria tão complexa, há muitas discussões sobre como evitar a banalidade do mal, em que caso ela se aplica, de que modo ela surge e quem está suscetível a ela. Ainda assim, poucas mídias ou debates talvez tenham retratado tão bem esse pensamento arendtiano quanto Zona de Interesse. O longa não se preocupa tanto em criar uma história com início, meio e fim. Ao invés disso, se utiliza de uma monotonia proposital para obter êxito em oferecer uma experiência única de visitar o mais sombrio abismo. Portas são abertas para diversos questionamentos e, se antes não se pensava no perigo do mal se tornar algo trivial, agora se acende um alerta. Jonathan Glazer mostrou de maneira cirúrgica, usando a história de Rudolf Höss, como essa questão esteve presente na Alemanha nazista, deixando uma gigantesca mancha sombria na história humana e ilustrando como situações iguais a apresentada são palpáveis e possíveis de acontecer ou se repetir, o que leva a uma dúvida inquietante que permanece após assistir ao filme: o que acontece se o mal triunfar e estiver tudo normal na casa ao lado?

Rudolf Höss observa sua família se divertindo enquanto ao fundo uma fumaça branca indica a chegada de um trem com prisioneiros judeus rumo à Auschwitz.

Referências:

AMIS, Martin. A Zona de Interesse.1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
ZONA de Interesse. Direção de Jonathan Glazer. Reino Unido/Polônia: A24, 2023. Filme exibido pela Amazon Prime Video. Acesso em: 14 mai. 2024.


Por Yure B. Ferreira, acadêmico de Letras da UPF, nível 7

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