A língua talian em União da Serra: entre fronteiras linguísticas e identidades culturais

1 Considerações iniciais

A Língua Talian1 tece uma presença vibrante em União da Serra (UdS), pequeno município no interior do Rio Grande do Sul. Ativamente usado em cada recanto da comunidade, desde os corredores da escola até os bancos da igreja, do clube aos corredores do supermercado, o Talian é o idioma local que, juntamente com o português, não encontra restrições de uso pela comunidade local e da região.

Este artigo é um recorte de um estudo mais amplo, em andamento, que surgiu a partir da realização da disciplina de Pesquisas e Tendências sobre o Ensino e Aprendizagem de Línguas Estrangeiras/Adicionais, PPGL UPF, que aborda o uso do Talian por jovens estudantes do ensino médio em UdS.

Diante disso, o objetivo deste texto é resgatar alguns aspectos importantes do Talian, trazendo uma contextualização do idioma no âmbito de UdS e região, com informações sobre a sua origem e evolução, na segunda seção. A seguir, um breve panorama do uso do Talian em UdS, e a finalização do texto com considerações preliminares de estudo inicial.

2 Um pouco sobre as origens da Língua Talian

A formação da língua portuguesa brasileira, ao longo dos séculos, sofreu grande influência do processo imigratório de europeus para o Brasil. A região Sul é constituída por uma miscigenação física, cultural e linguística, conferindo às comunidades particularidades em relação às demais regiões do Brasil (Herédia, 2003). O processo migratório no século dia XIX2, com alemães, italianos, poloneses, em contato com africanos, espanhóis e portugueses e os povos indígenas que já habitavam essa região, influenciou e influencia até hoje a constituição identitária e linguística dos brasileiros do sul do Brasil. 

Segundo Herédia (2003) e Dal Picol (2013), chegando ao Brasil, os imigrantes vindos da região que hoje é a Itália, eram alocados em colônias, porém, não havia nenhuma preocupação com a afinidade linguística. Diferentemente do que muitos pensam, no século XIX, a Itália não era um país unificado e vários eram os dialetos em uso. Além disso, até final do século XIX, grande parte da população era pobre e analfabeta, portanto, os dialetos eram usados oralmente, apenas, por esses indivíduos.

Parte dessa população chegou no Brasil como imigrante. Nesse contexto, a Língua Talian se originou aqui, como um registro oral, fundamentalmente, a partir de mais de uma centena de falares familiares, ao longo de 130 anos de imigração italiana, sendo influenciada e constituída, também pelo contato com os diferentes idiomas, nas diferentes regiões onde os imigrantes se estabeleceram. (Herédia, 2003; Dal Picol, 2013).Lodi (2020) informa que “no Rio Grande do Sul (RS), o Talian passou a ser considerada uma língua neolatina originária dos descendentes italianos no Estado, a partir da lei nº 13.178, de 2009, aprovada pela Assembleia Legislativa, que declarou o, então, dialeto Talian, integrante do Patrimônio Histórico e Cultural do Estado”. De acordo com a Certidão3 do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, o Talian

é uma das autodenominações para a língua de imigração falada no Brasil na região de ocupação italiana direta e seus desdobramentos desde 1875, em especial no nordeste do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso e Espírito Santo. Entre outras autodenominações, constam termos como língua dos nonos, dialeto vêneto, dialeto italiano. (2014).

Com base nos registros históricos, fica evidente que, apesar de o Talian ter ganhado força por ter sido reconhecido como idioma, sendo, ainda, usado em muitas regiões e comunidades do sul do Brasil, ele é para muitos uma língua oral. Esse fato e outros aspectos socioculturais, caracterizam o Talian como uma língua de imigração e minoritária, que corre o risco de desaparecer.

3 União da Serra e a Língua Talian

Conforme dados geopolíticos4, União da Serra faz parte da microrregião nordeste Rio-grandense, com área territorial de 131 km². Conforme Maccari (2022) os primeiros registros de colonização datam do século XIX, por volta dos anos de 1880, com a chegada das famílias Galliozzi e Giordani.

A emancipação política de União da Serra ocorreu no ano de 1993, com o desmembramento do município de origem, Guaporé. Conforme dados do Censo Demográfico do IBGE (2020) a população era estimada em 1.118 habitantes. A economia é prioritariamente agrícola e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é de 0.73 segundo o IBGE (2010).

Quanto ao Talian, apesar de ser usado por grande parte da comunidade, não podemos ignorar o fato de que, também, pode ser extinto em UdS. Segundo Thomason (2015), uma língua está claramente em perigo quando há risco de desaparecimento em uma ou duas gerações, quando seus últimos falantes são mais velhos, quando poucas ou nenhuma criança a está aprendendo como primeira língua e quando ninguém a está aprendendo como segunda língua.

Essa descrição de Thomason se alinha ao cenário de UdS. Por isso, alguns movimentos em favor da preservação do Talian estão ocorrendo, a partir da iniciativa da própria comunidade e do governo municipal.  Em 2022, aconteceu a cooficialização do Talian em União da Serra, o que foi um passo significativo para essa preservação. A lei estabelecendo essa cooficialização representa um compromisso formal das autoridades municipais com a valorização e reconhecimento do Talian. Além disso, proporciona um respaldo legal para iniciativas que promovam o ensino e a prática contínua do idioma na comunidade. 

Outra ação importante foi que o município passou a integrar o projeto Cucagna Scola de Talian5. Com isso, membros da comunidade passaram a realizar o curso que oferece o aprendizado da língua oral e escrita, com aulas semanais, baseado em bibliografia oficial do Talian, as aulas da Cucagna Scola de Talian são transmitidas semananalmente, via Google Meet, para 14 municípios do Rio Grande do Sul, além de outros 11 municípios, inclusive dos estados de Santa Catarina e Paraná que aderiram espontaneamente ao projeto, com aproximadamente 800 alunos, entre os diferentes níveis do curso.

Assim, entendemos que apesar de ser um movimento inicial, é possível que aliado a pesquisas e outras ações, o Talian possa se perpetuar no município,  permanecendo como uma língua viva agora e para as gerações futuras.

4 Considerações preliminares

Devido à colonização pelos imigrantes italianos na região de UdS, a cultura local perpetua costumes e tradições como herança dos seus primeiros habitantes.  A falta de escolas e as dificuldades de locomoção são elementos que fizeram parte das vivências dos antigos imigrantes. Assim, a organização em comunidades e convivências familiares e vizinhas, proporcionava alento aos recém-chegados. O idioma comum nasceu a partir da necessidade de comunicação e integração entre as comunidades que nem sempre eram oriundas das mesmas regiões.

Dessa maneira, entendemos que o estudo da Língua Talian, sua história desde as origens do município de União da Serra, até a atualidade, é bastante pertinente, para a própria preservação do idioma.  Não se sabe se o uso e sua perpetuação nas novas gerações Unisserranas será uma realidade, por vários fatores que merecem ser investigados. Por isso, pretendemos dar continuidade à pesquisa que pretende contribuir para a preservação de um idioma que faz parte das caraterísticas identitárias da nossa região.

A resposta da comunidade tem sido extremamente positiva. A cooficialização do talian reflete o reconhecimento da importância cultural e histórica da língua. A participação ativa da população em iniciativas pontuais, demonstra um comprometimento coletivo com a preservação do Talian, indicando que a língua não é apenas uma herança, mas um elemento vital da identidade local em constante evolução.

Sendo assim, evidencia-se a existência de um cenário peculiar no sul do Brasil, onde duas línguas coexistem de maneira aparentemente harmoniosa, transcendendo as fronteiras linguísticas para explorar as interseções entre língua, identidade cultural e pertencimento social em União da Serra. A riqueza desse fenômeno bilíngue desafia classificações convencionais e oferece uma narrativa fascinante que merece ser compartilhada e preservada.

  1. Neste texto usaremos Talian e Língua Talian como nomes próprios a fim de destacar o idioma. ↩︎
  2. De acordo com informações do Museu Etnográfico da Colônia Maciel “A vinda de italianos par o Brasil tornou-se mais sistemática no século XIX, após a implantação por D. João VI do projeto de imigração europeia. Na segunda metade do século XIX, ocorreu um dos maiores movimentos migratórios da história da humanidade: 10 milhões de europeus rumaram para a América. Entre 1875 e 1900, 803 mil imigrantes europeus chegaram no continente americano por portos brasileiros. Desse total, 577 mil eram italianos. A cada 1000 imigrantes europeus para a América, 57 eram italianos que adotaram o Brasil, espalhando-se pelo país, sobretudo em São Paulo e no Rio Grande do Sul.” Disponível em https://wp.ufpel.edu.br/museumaciel/imigracao-italiana-no-brasil/ ↩︎
  3. Disponível em http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Certidao_%20Talian.pdf  ↩︎
  4. Site oficial do Município de União da Serra. ↩︎
  5. O Projeto é uma  parceria entre a Associação dos Difusores do Talian, ASSODITA, e a Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná, UNICENTRO, patrocinado pela Cooperativa dos Produtores de Leite de Serafina Corrêa, COOPERLATE, com o fomento da Lei de Incentivo à Cultura do Estado do Rio Grande do Sul. ↩︎

Referências
AL PICOL, Greyce. A morfossintaxe na oralidade do vêneto sul-rio-grandense: perfil dialetal de comunidades rurais da região da 4ª légua, Caxias do Sul/RS. (Dissertação – Mestrado) – Universidades de Caxias do Sul, Programa de Pós-Graduação em Letras, Cultura e Regionalidade, 2013. 
HERÉDIA, Vania Beatriz Merlotti. Língua, cultura e valores: um estudo da presença do humanismo latino na produção científica sobre imigração italiana no Sul do Brasil. Porto Alegre: EST, 2003.
LODI, CATIANA DALLACORT. Ghe zera una volta… O ensino de talian como língua adicional para crianças: uma proposta didática a partir da contação de história. Mestrado (em Letras) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Fundação Universidade de Passo Fundo. Passo Fundo, 109 f., 2020.
MACCARI, Lucinda Chiarello. Memórias de Vila Oeste. Passo Fundo: Berthier, 2022, p.13.
THOMASON, Sarah. Endangered languages: an introduction. Cambridge: Cambridge University Press, 2015.


por Carina Magrin, Egressa do curso de Letras UPF; professora da rede pública de Serafina Corrêa; coordenadora do núcleo Cucagna Scola de Talian de União da Serra  e aluna especial do PPGL UPF. E-mail c.magrin@yahoo.com.br
& Luciane Sturm, Doutora em Linguística Aplicada, pela UFRGS; professora do Curso de Letras e PPGL UPF. E-mail lusturm@upf.br .

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