Tudo que nóis tem é nóis

Partindo do pressuposto de que a fala é o objeto de estudo da Sociolinguística, o presente ensaio possui como cerne fazer a análise da fala mais espontânea a partir de um contexto de interação verbal não espontâneo (BAGNO, 2012, p.103). Dito isto, é válido ressaltarmos que, devido seu caráter social, essa ciência questiona-se sem cessar a respeito do por que determinado signo, ou melhor dizendo, palavra é pronunciada de uma forma por um grupo x de pessoas e pronunciada de outra forma por um grupo y de pessoas. Ao fim desse ensaio, portanto, espera-se deixar evidente e perceptível aos olhos de todos que “não existe língua homogênea: toda e qualquer língua é um conjunto heterogêneo de variedades” (FARACO, 2005, p. 31).

A partir dessa percepção, o fenômeno linguístico que iremos desmembrar ocorre na fala do rapper Leandro Roque de Oliveira, mais conhecido como Emicida, ao programa de TV Papo de Segunda, transmitido pelo Canal GNT. Previamente, vale-se ressaltar que analisaremos apenas um trecho da fala do rapper, do segundo 0:02 até o segundo 0:20, sendo, o mesmo, apenas um recorte do episódio na íntegra. Outro ponto indispensável para chegarmos, de fato, à fala em si, é visualizá-la inserida em um contexto, aqui será o sistema de cotas no Brasil, tema do episódio. À vista disso, em certo momento, Fábio Porchat, um dos apresentadores do programa, pergunta ao rapper se ele já havia usado cotas alguma vez durante sua vida. Emicida, ante a pergunta, responde: “Não. Não. Mas sou 200% a favor, acho que o Brasil tem uma dívida histórica e… isso precisa ser reparado […] acho que nóis temo uma ota questão aqui”. Baseando-se nisso, analisaremos brevemente e especificamente o fenômeno linguístico “nóis”, apesar de coexistir outros fenômenos passíveis de um olhar mais individual nesta mesma fala.

Pode-se notar, em um primeiro momento, que ao fazer o uso de “nóis” para referir-se a “nós”, Emicida utiliza da variação linguística, a qual ocorre frequentemente na prática social da língua, visto que, quem controla e mobiliza a língua é o próprio falante. Ou seja, ele tem o poder de decidir utilizar isso ou aquilo, ou ainda, fazer o uso do “nós” ou do “nóis”, por exemplo. O falante, por sua vez, dá o veredito à decisão, mesmo que às vezes inconscientemente, a partir da sua intenção de fala ao escolher determinado signo ao invés de outro. Além de, é claro, basear-se também no contexto em que a fala se realiza, nas pessoas que sua interpretação irá atingir e envolver. Há uma grande mobilização significativa por trás. Não é um simples “nóis”. Na obra A vida da linguagem, Whitney afirma que “[…] vemos numa palavra uma parte de um sistema, um anel de uma cadeia histórica, um termo de uma série, um signo de capacidade, de cultura, um laço etnológico” (2010 [1875]. p. 281). E é esse sistema, esse fragmento histórico, essa fração de cultura e esse elo etnológico que transpassaram na fala de Emicida. Vai além das palavras. Perpassa. 

Mergulhando mais fundo nas águas da sociolinguística, podemos partir, após isso, para uma segunda perspectiva de análise a respeito do “nóis”, observando agora a mudança de estrutura fonética da palavra originária “nós”. Pode-se, ainda, segundo o linguista Marcos Bagno (2012) em sua obra, Gramática Pedagógica do Português Brasileiro, nomear esse fenômeno de mudança estrutural como metaplasmo. Ou seja, devido a ocorrência do acréscimo de fonema no vocábulo na fala do rapper, ocasionou também, consequentemente,  o aumento da forma fonética “nós”. Dito de outra forma, o signo de “origem” que estamos comumente habituados a vê-lo na feição de “nós”, recebe um novo fonema no vocábulo, o “i”, passando então, a ser o “nóis” usado por Emicida. 

O exposto até aqui corrobora, significativamente, para a concretização da citação de Carlos Alberto Faraco de que há heterogeneidade no conjunto de variação de toda e qualquer língua. Porém, caso não tenha ficado evidente e perceptível aos olhos, Marcos Bagno auxiliará facilitando a compreensão. Ainda na obra, Gramática Pedagógica do Português Brasileiro, ao abordar a respeito do vernáculo brasileiro, ou seja, das variações da língua falada mais espontânea — aqui se inclui o “nóis” que analisamos há pouco  — Bagno diz: “Esses usos caracteristicamente brasileiros já estão plenamente integrados à gramática da nossa língua, gramática entendida aqui como o conhecimento intuitivo que todo falante nativo tem de seu próprio idioma” (2012, p.108). Em suma, tanto o uso do “nós” quanto o uso do “nóis” são aceitos sociolinguisticamente, afinal, suprem as necessidades de diferentes falantes. Cada qual possuindo as suas experiências e vivências com o vernáculo brasileiro. O que não podemos é considerar apenas um desses usos e desconsiderar o outro. Jamais. “Temos que estudar e ensinar a nossa língua com base no que ela é aqui e agora, no Brasil do século XXI” (BAGNO, 2012, p.111). Complemento, ainda, dizendo que devemos respeitar e usufruir a nossa língua com base no que ela é aqui e agora. Com base no que ela significa e representa no aqui e no agora sem desmerecer o que ela já foi. Sua história. Emicida, na música Principia, fala: “Simbora que o tempo é rei / Vive agora, não há depois (…) Tudo, tudo, tudo que nóis tem é nóis (…) Tudo que nóis tem é isso: uns aos outros”.

REFERÊNCIAS
BAGNO, Marcos. Gramática Pedagógica do Português Brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.
EMICIDA. Emicida. Principia. YouTube, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kjggvv0xM8Q Acesso em: 9 Abr. 2023.
FARACO, Carlos Alberto. Linguística histórica: uma introdução ao estudo da história das línguas. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.
GNT, Canal. Emicida fala sobre o sistema de cotas no Brasil. YouTube, 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-Y9hLafIFlU#:~:text=%C3%A9%20das%20 pessoas%20 pensarem%20 fraude,que%20 separar% 20 porque%20 tem%20 fraude Acesso em: 9 Abr. 2023.
WHITNEY, W. D. A vida da linguagem. Tradução de Márcio Alexandre Cruz, Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.


por Camila Donida

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