Editorial v. 6, nº 2 – Dez. 2023

Proêmio do quase fim do mundo 

Talvez seja hoje. Amanhã, quem sabe. Daqui a uma semana ou dentro de algumas décadas ou séculos. Não há um oráculo que nos diga exatamente quando e como tudo o que conhecemos deixará de ser o que vemos, ouvimos, tocamos, amamos ou desgostamos. Porém, é provável que há muito já estejamos experienciando isso de determinados modos na nossa nem tão pacata existência humana.

Existem, por exemplo, aqueles que, neste exato momento, nos contextos dos conflitos que ultimamente têm se intensificado pelo planeta, estão presos em um ciclo de perda do próprio universo de referências, dos seus lugares enquanto seres vibrantes, que emanam sonhos e desejos de futuro. Há muitos deles, muitos de nós, tendo as suas vidas divididas arbitrariamente entre as que ficam e as que devem ir, estas últimas reduzidas a pó, a uma poeira espessa que faz de seus corpos sombras de memórias do que foram e não puderam ser. Algumas delas sombras grandes, outras pequenas demais, tão pequenas que, em tempos normais, poderiam ser envolvidas por um par de braços e ninadas sem muito esforço.

O óbvio é afirmar que essa metamorfose antinatural de corpos em sombras ocorre em nossa história desde que a iniciamos como entes sociais. Acontece, não é? É o que nos sucede e fazemos acontecer uns aos outros. O não tão óbvio ou não tão fácil de digerir seria compreender que, diante desse fenômeno que extingue violentamente a vida e suas ramificações, que condena famílias e gerações inteiras à poeira e à escuridão de olhos que jamais se abrirão novamente, estamos, enquanto humanos, com a base do nosso mundo, no qual andamos, nos apaixonamos, choramos e sorrimos, em ruínas. Estamos todos sucumbindo ao mesmo tempo.

No entanto, ao invés de abraçar essa situação com as cabeças baixas como se a derrota absoluta nos tivesse alcançado, talvez fosse mais prudente e bem-vindo refletirmos a respeito da nossa condição e procurarmos agir cada vez mais, nos diferentes âmbitos nos quais marcamos presença dia após dia, em prol do cuidado mútuo, da preservação do que nos torna matéria viva – palpável e senciente – e comunitária; a qual também possa ser premeditada por meio das palavras, palavras que deem origem a discursos de resistência ao que nos aflige, capazes, inclusive, de romper as fronteiras territoriais. Precisamos, nesse viés, mais do que nunca, entoar e escrever palavras, como uma poderosa maneira de impedir que mais vidas se transformem em sombras, protegendo os que aqui ainda estão, a memória dos que se foram e o direito de viver daqueles que estão por vir. Assim, poderemos reconstruir as estruturas do nosso mundo e garantir a continuidade de nossa existência.


Mestranda Caroline de Camargo Ribeiro – em nome da equipe Letrilhando.

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